Caixinha de Música

sábado, 13 de novembro de 2010

               Torneirinha de asneiras, como diria Emília
           

              A polêmica recente sobre a ameaça de censura ao livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, subestima a criança e o professor brasileiros. À criança, porque julga que ela, lendo as irreverências de Emília, uma boneca de pano, criada pela própria Tia Nastácia, passe a agir preconceituosamente em relação ao negro; ao professor, porque pressupõe que ele não saiba "desconstruir" um texto, questionar com seus alunos se a " visão preconceituosa" em relação à Tia Nastácia – na fala de Emília - reflete um preconceito de Monteiro Lobato ou é a maneira que ele encontrou para denunciar um problema real, existente na sociedade da época.

                Monteiro Lobato criou um universo para a criança brasileira, enriquecido pelo folclore, ao trazer para as suas páginas seres fantásticos como a Cuca, o Saci, a Mula-sem-cabeça, a Iara, o Lobisomem. Esses seres devem ser banidos, porque não existem e porque podem traumatizar as crianças? Não bastasse essa carga ficcional, Lobato apresenta-nos o Visconde de Sabugosa, o intelectual que tem explicações para tudo. Seria o Visconde uma crítica aos eruditos, feios, esqueléticos, feitos de sabugos de milho e vestidos com palha?

               Os personagens de Lobato são extremamente nacionalistas, traduzindo sua brasilidade na linguagem, nos hábitos e nos costumes. Lobato tem uma literatura engajada, envolta num mundo imaginário, uma literatura que conscientiza, que denuncia problemas políticos, econômicos e sociais. Em "O Sítio do Picapau Amarelo", por exemplo, indigna-se com a exploração do Petróleo, o que levou a publicar o livro "O Poço do Visconde", que conta a história da descoberta do Petróleo, nas terras do Sítio, que era a metáfora das terras de sua família. As personagens de Lobato dizem tudo o que ele pensa sobre a descoberta, entre elas Emília, que representa o seu alter ego.

            As crianças da nossa geração leram essas obras; nossos filhos cresceram brincando no "Sítio do Picapau Amarelo". E aos nossos netos, vamos deixar que lhes roubem esse direito?

               Será que a infância não foi lesada em sua magia, em seu encantamento, nas últimas décadas, ao perder um pouco o contato com os personagens fantásticos e passar a conviver com os seres do mundo "normal", envolvidos em temas como aborto, drogas, violência, sexualidade, pedofilia, corrupção, sequestro? A Literatura tem como função precípua o compromisso com a ficção, com a arte, com o encantamento.  Vida real? Sim! Mas literatura é, antes de tudo, arte, e arte que é arte não pode perder o sentido do belo, da "mentira", da invenção.

               Esse Sítio de Lobato, esse Brasil brasileiro, deve ser defendido por todos nós! A sabedoria de dona Benta, mostrando a importância do idoso na sociedade, não é importante? As habilidades de Tia Nastácia, mostrando o valor do trabalho doméstico, artesanal, inventivo não têm valor? A curiosidade e a peraltice de Pedrinho e de Narizinho não fazem falta na imaginação das nossas crianças? Por conta de interpretações – essas, sim – preconceituosas vamos deixar execrar Monteiro Lobato?

        Tia Nastácia, importante na trama narrativa de Lobato, tinha vez e tinha voz, nas grandes discussões no Sítio. Essa negra de nome de princesa, deve ser uma homenagem do nosso Lobato à princesa bantu Anastácia, cuja beleza causava tal inveja que lhe cobriram o rosto com uma máscara de ferro, para que as mulheres brancas não ficassem humilhadas diante de tanta beleza. Essa mártir Anastácia, que muitas comunidades religiosas afro-brasileiras consideram santa, não seria uma homenagem de Lobato ao negro? Ninguém se lembrou disso? Ou seria "Anastácia" uma homenagem à santa Anastácia, martirizda durante o período de perseguições contra os cristãos, perpetradas por Diocleciano, como tantos negros foram martirizados no Brasil escravagista?   

Só na análise da escolha do nome já se vê a importância de tia Nastácia, para Lobato. Pedrinho e Narizinho são arquétipos de qualquer criança em idade de "reinação"; a matriarca Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, a avó sabe-tudo, é, no imaginário infantil, a representação de qualquer avó; os demais personagens têm nomes comuns. Mas Anastácia é diferente. 

A turma do Sítio deve estar no maior alvoroço: - Lobato, preconceituoso?

         



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