Caixinha de Música

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Da obviedade das coisas prosaicas

Toda crônica, desde que me apanhei estudando esse gênero, ou seja, desde o início do sempre, é a coletânea de fatos históricos; de narrações em ordem cronológica; o conjunto de notícias sobre pessoas; a seção de um jornal em que são comentados os fatos; as notícias do dia, assumindo-se como gênero literário quando faz a apreciação pessoal dos fatos da vida cotidiana. Logo, é óbvio o título desse relato. Mas vamos aos gatos, aliás, aos fatos.
Tenho uma vizinha. Quem não as tem? Ela cria gatos, ao longo de trinta anos, desde que nos tornamos parede com parede. Nem ela sabe dizer quantas gerações se passaram, de gatos, claro. Ontem fui visitá-la, literalmente arrastada por três netos que queriam ver os gatinhos. E lá fui eu, ao final da tarde, visitar esses bichanos egoístas, aos quais tenho uma alergia profunda, e pelos quais quase tive pequenos desentendimentos com a vizinha.
Ao longo de quase três décadas, esses danadinhos nos perturbaram muito: comiam os passarinhos dos meus filhos, que insistiam em criar pássaros vizinhos de gatos; usavam meus canteiros para suas necessidades; faziam um amor escandaloso em meu telhado, arrebentando telhas, caindo sobre as plantas. Quando um dos meus filhos ia lá dar queixa de um gato, a vizinha sempre respondia: - O que é que eu posso fazer? É instinto. Nem essa verdade inconteste livrou um bichinho ou outro de uma bodocada, sem que disso eu partilhasse, óbvio!
Jamais criaria gato. Primeiro, porque são livres demais, soltos demais, saem e voltam quando querem, e geralmente querem algo quando voltam; são egoístas, não lhe fazem um agrado, mas se roçam em suas pernas, às vezes até para se coçarem em você; gostam de camas e de almofadas, e eu sou alérgica a pelos; têm uns olhos perscrutadores, misteriosos, incomodativos demais.
Os tempos se passaram, os filhos cresceram, os netos surgiram, mas os gatos continuaram os mesmos, sem nenhum sinal evolutivo, em sua função multiplicativa. E eis-me – quem diria? – visitando a mais recente ninhada, com os meus Gatinhos, esses muito amados e inventivos. E vi gato de tudo que é raça, cor, tamanho, idade. Os meus Gatinhos ficaram apaixonados e desembestaram ao tentar desvendar a árvore genealógica do phylum Chordata, dessa família Felidae, gênero Felis, ou sei mais o quê que a zoologia determina.
- Por que o nome da mãe é Maria Coelha?
- Ah, porque pare muito.
- Pare? Tá errado! É para!
- Não, é pare mesmo!
- “Pare” é o quê? Perguntou um dos netos, de três anos.
A vizinha ficou meio confusa e resumiu: - Pare de parir: é nascerem mais gatos, sempre.
- Ah, concordou o Gatinho. E como é o nome desse daqui? Afagava a cabeça fofa do único gato bonito da casa, um persa, cor de caramelo, todo cheio de si, para quem era comprada a melhor ração, aquele que ganhava brinquedos, e até bolo de aniversário com recheio de atum.
- O nome dele é Caramelo!
E foram desfilando nomes de gatos: Ratinho, uma coisinha feia, que havia sido encontrado numa valeta; Bolota, uma gordinha; Boloto, um gordinho; Branquinha, uma gatinha preta retinta; Chana, uma gata velha, que não paria mais, mas não parava em casa, e vários outros e outras com nomes de celebridades que nem valem a pena citar, pois não tinham nada de criativos. Tão somente a mera obviedade das coisas prosaicas.
E fiquei pensando como são parecidos, os netos e os gatos... Ambos têm uma sede de liberdade, um saudável egoísmo, um jeito manhoso de quererem bem, um sentimento de nos possuirem, em vez de nós a eles.

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